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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

SEU LUNGA

Joaquim dos Santos Rodrigues: o homem seu Lunga
Seu Lunga é apenas o apelido de Joaquim dos Santos Rodrigues. As piadas sobreele escondem atrás da personagem o homem real, nascido em Caririaçu, fronteira Norte de Juazeiro, em 18 de Agosto de 1928. Viveu a infância com os pais e mais sete irmãos, "no meio dos matos,"afastado da cidade. O apelido lhe acompanha desde esta época, quando uma vizinha de sua família, que ele só identifica como preta velha, começou a lhe chamar de Calunga, que virou Lunga e pegou.

Começou a trabalhar na roça aos oito anos de idade, e admira a criação rígida que teve de seu pai, o que marca um aspecto psicossocial do homem Lunga. Sobre a educação recebida, Lunga responde: "Uma educação desses pais de família sérios, homem de responsabilidade, homem de caráter, homem de palavra, homem de respeito." Lunga deixa sua postura um tanto desinteressada da conversa, para deixar transparecer sua admiração pelo pai.

Da infância traz poucas lembranças, como as brincadeiras com os colegas, que eram seus próprios irmãos. Entre os irmãos dominava a determinação do pai de que os mais novos deveriam obedecer aos mais velhos. Há também as lembranças das poucas idas à cidade, acompanhando o pai que ia vender ou comprar algo. Foi assim até aos 16 anos, quando se mudou para o Juazeiro.

Causos e piadas sobre Seu LungaCuriosidades e vídeos e sobre Seu Lunga

A mudança para o Juazeiro se deu depois que Lunga caiu em uma cacimba e adoeceu, impedindo-o de trabalhar na roça com o pai. Lá ele aprendeu a arte de ourives, e viveu disso por dois anos. Foi nesse período que seu Lunga aprendeu a negociar no Mercado Público da cidade, passando depois a trabalhar no comércio com sua loja de sucata.
A determinação de seu Lunga que o fez ir para a cidade morar longe da família e conseguir sobreviver fazendo o que nunca tinha feito antes também se mostrou quando pediu a prima em casamento.

Sem nunca terem namorado, Lunga deu a ela três dias para pensar se queria ou não casar-se com ele. Terminado o prazo, ela aceitou o pedido, e só não se casaram no dia seguinte, porque o pai da moça não deixou. O namoro então durou uns dois ou três meses.

Casado desde 1951, hoje Lunga é pai de treze filhos, mas se ressente de não ter podido lhes dar uma educação mais rígida, pois sua esposa "é contra se castigar um filho." Apesar disso, ele se orgulha de todos eles, com exceção de um, terem estudado e se formado em alguma profissão (nenhum com nível superior, entretanto), ao contrário dele mesmo, que foi às aulas por apenas dois meses.

O pai Lunga reflete a rigidez do homem que deu origem a toda a construção dapersonagem pouco flexível, mas ao mesmo tempo deixa transparecer o orgulho comum a todos os pais: oferecer boa educação aos filhos. É interessante também notar como a realidade interiorana de Lunga influencia em sua avaliação da educação de seus filhos. Ao dizer que quase todos os filhos eram formados, ele disse que nenhum, entretanto, tinha "formatura alta," referindo-se à formação de nível superior.

Ora, em sua vivência, a formação acadêmica é um contexto distante, dispensável para seu estilo de vida. A pouca instrução de Lunga, por outro lado, não o impede de discorrer sobre assuntos como política, cultura, religião, nem o impediu também de candidatar-se a vereador da cidade de Juazeiro em 1988, eleição que não ganhou porque, segundo ele, teve seus votos roubados.

Além do comércio, seu Lunga é dono de um sítio onde cria gados e planta frutas que leva para sua loja para vender. Homem sem grandes paixões, ele se considera "temperado." Religioso, ele se declara devoto do padre Cícero, o que é uma marca também da cearensidade de seu Lunga. Apesar disso, ele não é freqüentador assíduo das missas, pois pensa que religião não é ir a uma igreja ou participar de romaria, mas ajudar àquele "que bate na porta." Em tudo isso seu Lunga se acha feliz.

A rigidez de seu Lunga o faz repudiar a construção de sua personagem, pois o homem se sente tremendamente injustiçado com as estórias que ele diz serem inventadas. E se tem um tema que seu Lunga sempre traz à tona em seu discurso, é a justiça. Lunga não pode perceber aqui a separação entre a construção cultural, o objeto imaginado e abstraído da realidade e a realidade em si. O homem toma a personagem como ofensa pessoal, e isso também fala de sua formação cultural e de seu caráter.

O homem mais zangado do mundo: personagem seu Lunga
A fama da rudeza do seu Lunga, "o homem mais zangado do mundo," corre o Ceará de norte a sul, nas historietas engraçadas contadas nas mesas de bar, nas rodas de amigos, nos ônibus, nos versos do cordelista.

O único que não ri dessas piadas é seu Lunga. Para ele, o que andam contando a seu respeito é invencionice. Mas ao mesmo tempo que ele nega a veracidade das histórias, seu Lunga reconhece uma origem para elas. É que ele "não faz por menos," isto é, se perguntou errado, tem a resposta que merece. Essa é sua grande queixa com relação aos brasileiros e seu principal discurso regular, isto é, aqui e ali ele retorna a essa argumentação. É como se ele quisesse se justificar de sua grosseria.

Ele cita vários exemplos de como isso acontece. Um cliente entra na loja e pergunta sobre um ventilador desligado: "Está funcionando?" Indignado seu Lunga devolve: "Como é que ele pode estar funcionando se não está ligado?" Segundo ele, essas e outras respostas a colocações mal feitas é que lhe deram a fama de ignorante.
Há, contudo na fala de seu Lunga uma contradição nítida.

Em alguns pontos ele reconhece um fundo de verdade nos comentários sobre ele; em outros, ele acha inadmissível o fato de alguém ter escrito o que ele considera inverdades a seu respeito. Seu desgosto com os cordéis e as piadas talvez fosse esperado, mas é que sua defesa é tão acirrada, que às vezes faz pensar que o cordelista fala dele algo que ele absolutamente não é.

Esse é um mote para uma discussão interessante: Abraão Batista (o cordelista) pode receber todas as acusações feitas da parte de seu Lunga, pois na verdade ele conta estórias de que ouviu falar, mas que não tem nenhuma confirmação já que ele nem sequer conhece seu Lunga. Por outro lado, ele se junta ao grupo dos que constróem a personagem seu Lunga cada vez que uma história sobre ele é recontada, aumentada, ou até mesmo inventada.

A questão principal aqui é observar como uma identidade pode ser construída a partir de invenções, de criações em torno de um tema central, e como essa construção permite que se vá além da realidade, que dela se exceda, se extraia os componentes nela verificados, e que se simplifique, se estereotipize, se caricaturize e faça dela desgraça, argumento, elemento legitimador, humor etc.

Esse é o mesmo processo discutido no capítulo 1, pelo qual passou e ainda passa a região Nordeste, quando da construção de sua dizibilidade e visibilidade. Os elementos utilizados não precisam necessariamente observar-se na realidade da maneira como é dito, i.e., a dizibilidade muitas vezes não se confirma na realidade, mas ainda assim essa construção é legítima (ou melhor, foi legitimada) porque tem um propósito final (o Nordeste já aprovou até lei com sua dizibilidade).

Abraão Batista reconhece que o personagem de seus cordéis é uma construção sua, ao afirmar que se Lunga hoje é um atrativo turístico de Juazeiro do Norte, isso é devido ao cordel. É claro que a fama de seu Lunga não é resultado da composição dos cordéis, antes, os cordéis é que são resultado dessa fama, mas é importante notar que o processo de construção "inventada" realmente existe, isto é, o comerciante seu Lunga virou o atrativo turístico seu Lunga. Ele não nasceu o seu Lunga que conhecemos hoje, ele é uma construção cultural.

O Nordestino Seu Lunga
Quem é o nordestino seu Lunga? Como ele se comporta como nordestino? Como o fato de ele ser nordestino influencia em suas interpretações da realidade? Em primeiro lugar, é importante retomar as condições para se ter uma identidade nordestina enumeradas por Maura Penna (1992), para à luz delas verificarmos a "autenticidade" da nordestinidade de seu Lunga. A primeira condição é a naturalidade, que diz respeito ao local de nascimento, se este faz parte da região geográfica Nordeste. Nascido no estado do Ceará, seu Lunga se encaixa, portanto, na primeira condição.

A segunda é a vivência, e toda a história de seu Lunga se passa na região Nordeste, a maior parte dela na cidade do Juazeiro do Norte, Ceará; a terceira condição é a cultura e é inegável o envolvimento de seu Lunga na cultura nordestina, mais especificamente na cultura de sua cidade, com suas crenças religiosas, vida política, prática comercial etc. Por último, há a auto-atribuição que é o único elemento não-empírico dessa lista. Não-empírico por não poder ser inferido pela observação. Por não poder inferir essa última condição, é que passarei à análise de seu discurso, para ver de que forma seu Lunga tem assimilado o "texto Nordeste."

Em entrevista com seu Lunga, perguntei qual era o maior problema do Nordeste. Ele me respondeu que era a seca, mas logo seu discurso mudou, e da calamidade natural, ele desviou o foco para a "injustiça que opera no Nordeste," referindo-se à falta de ação política, e ao desinteresse mesmo da classe política em agir. Ora, mais uma vez seu Lunga expressa um discurso contraditório, pois inicialmente ele culpa a falta de chuva na terra de ser a causa do maior problema da região, mas logo em seguida retoma o discurso que ele utiliza desde a primeira pergunta da entrevista: a injustiça que faz com que a construção da casa Nordeste não tenha "base," "alicerce." Lunga ao invés de enumerar os dois fatores, sobrepõem um ao outro, tornando seu discurso contraditório.

Mas o fato que interessa reconhecer nesse discurso é o agenciamento de uma imagem construída sobre o Nordeste: a seca. E essa não é a única. Quando perguntei a ele o que ele pensava que era a imagem que paulistas e cariocas têm do Nordeste, ele disse que eles pensam que "aqui era o povo tudo morrendo de fome." Ao dizer isso seu Lunga queria contestar essa visibilidade, mas ao mesmo tempo, seu discurso assumia essa imagem como verdadeira. Ele falou então que se observássemos uma empresa em São Paulo, encontraríamos "1000 funcionários paulistas e 5000 nordestinos."
A nordestinidade de seu Lunga também se observa em outros momentos.

Ao falar do homem seu Lunga, fiz referência a um forte elemento ligado à dizibilidade do nordestino, que é a religiosidade. Seu Lunga é devoto de padre Cícero, e quando se fala de Juazeiro, Cícero é a marca identitária que primeiro vem à mente de qualquer pessoa. Seu Lunga então, tem um perfil, que, em mais um aspecto confirma não só sua nordestinidade, mas também sua cearensidade.

É possível notar também marcas da regionalidade em seu Lunga em expressões que ele usa como "comer uma saca de sal junto" para poder conhecer quem realmente é uma pessoa ou "a casa caiu 'por riba' do povo tudinho," falas tipicamente associadas ao nordestino.
FONTE: http://culturanordestina.blogspot.com.br

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